Letterboxd 1jb18 Bresil https://letterboxd.telechargertorrent.org/bresil/ Letterboxd - Bresil Movie Dementia 256e1q 1986 - ★★★★★ https://letterboxd.telechargertorrent.org/bresil/film/movie-dementia/ letterboxd-review-905117505 Mon, 2 Jun 2025 14:17:51 +1200 2025-06-01 No Movie Dementia 1986 5.0 167468 <![CDATA[

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A experiência de assistir a Filme Demência não se inscreve na tradição da cinefilia canônica nem na estruturação dramática da narrativa clássica. Trata-se de um dispositivo instável de colapsos e ressurgências, em que o corpo do cinema é exposto como matéria vibrátil, contaminada, autofágica. Reichenbach não dirige. Ele implode. O filme não conta uma história. Ele contamina a retina.

Não se pode entender Filme Demência senão como a encarnação anárquica da falência estética do cinema como representação coesa. Cada plano não se alinha com o anterior. Cada corte subverte a progressão esperada. Não há continuidade. O que existe é acumulação. A montagem funciona por atrito, não por sintaxe. A imagem não é signo. É carne ruidosa. A câmera fere. O som extravasa. O cenário é explícito em sua artificialidade. A atuação não busca verossimilhança. Busca fratura.

Reichenbach ergue um monumento ao descontrole. A trama, se existe, dissolve-se em delírios que ressoam a um Fausto pós-industrial, amputado de transcendência, mergulhado num Brasil periférico, febril e rotineiramente disfuncional. A referência ao mito é apenas pretexto para extrair do texto original o que ele tem de mais viscoso e transformá-lo em máquina de choque. O pacto fáustico não se realiza com forças do além, mas com as estruturas concretas da dominação midiática, policial, sexual e econômica.

O corpo, nesse cinema, não é erotizado. Ele é operado. O nu não é alegoria. É fisiologia crua. O erotismo é atravessado por camadas de ruído e agressividade. As cenas de sexo não são libidinosas. São coreografias do excesso. A pulsão não gera prazer. Gera tensão contínua. Os gestos são brutos. Os enquadramentos oscilam entre o delírio expressionista e a crueza documental. A câmera se aproxima como se quisesse engolir a cena. A encenação escorre para fora dos limites do plano.

O filme se configura como sintoma daquilo que o cinema nacional não soube nomear nas décadas anteriores. Um refluxo brutal de desejos reprimidos, violências normatizadas e fantasias mal digeridas pela cultura de massas. Tudo que foi soterrado pelas produções normativas da Embrafilme, pelas comédias industrializadas, pelas censuras políticas, retorna aqui sob a forma de matéria indomável. Filme Demência é o trauma estético da cultura brasileira pós-ditadura encarnado numa obra que recusa qualquer sistema de domesticação visual.

A cidade, ao fundo, aparece como uma topografia de ruína contínua. Não há paisagem. Há colagem. Não há cidade-cenário. Há metrópole-feixe. Os personagens circulam como espectros sem eixo. A fala não busca comunicação. É ruído performático. A música não acompanha. Ela sabota. A direção de arte não suaviza. Ela contamina. Tudo no filme parece resgatar do lixo simbólico da cultura popular brasileira os fragmentos esquecidos, os clichés extintos, os gestos disfuncionais, para montá-los como cadáveres dançantes em um carnaval terminal.

Não se trata de vanguarda. Trata-se de exaustão. Reichenbach não está propondo uma nova forma. Ele está expondo o apodrecimento da forma. O filme não oferece saída. Não sugere transformação. Ele arrasta o espectador por um túnel de carne, luz e som até o ponto de não retorno. O cinema, aqui, não é janela nem espelho. É superfície em combustão.

Recomendar Filme Demência não é recomendar um filme. É convidar à exposição sem anestesia a um organismo audiovisual em colapso permanente. Uma experiência que exige do olhar um descondicionamento radical. Que exige da escuta uma resistência muscular. Que exige do corpo um compromisso com o desconforto. Assistir a Reichenbach neste estado de excreção estética é aceitar que o cinema pode ser, em sua forma mais extrema, a arte de não mais ar.

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Bresil
Picnic on the Grass 6x1b39 1959 - ★★★★★ https://letterboxd.telechargertorrent.org/bresil/film/picnic-on-the-grass/ letterboxd-review-905113175 Mon, 2 Jun 2025 14:13:24 +1200 2025-05-29 No Picnic on the Grass 1959 5.0 43101 <![CDATA[

O último suspiro da racionalidade moderna se dá ao ar livre, entre as oliveiras. Picnic on the Grass é uma farsa pastoral sobre a falência das utopias tecnocientíficas e a impotência da razão quando confrontada com o real biológico do corpo. Renoir filma com a serenidade de quem compreendeu que o Iluminismo falhou, mas que isso, por si só, não é tragédia. É comédia. A alta cultura europeia, encarnada na figura do cientista prestes a se tornar presidente de uma Europa unificada pelo saber laboratorial, entra em colapso não por força de um antagonismo político, mas porque tropeça na terra, na pulsão, na gravidez acidental, no caos controlado da vida camponesa.

Não há nostalgia no campo filmado por Renoir. Há ironia. A natureza não é idealizada. É ambígua, contraditória, reativa. As folhas vibram ao vento enquanto os drones do pensamento cartesiano perdem altitude. A mise-en-scène é transparente. Não há sombras densas. Não há filtro. A luz é plena. O espaço é aberto. E é justamente nesse excesso de claridade que se desenrola a crítica mais ácida à ideologia do progresso. O saber científico não é demonizado. É ridicularizado. Os discursos sobre reprodução artificial, controle genético, superação da animalidade, são colocados lado a lado com refeições ao sol e impulsos sexuais espontâneos. Renoir opõe a teoria à digestão. A conferência acadêmica ao apetite. A lógica à carne.

O filme escapa de qualquer leitura binária entre natureza e cultura. Ele não celebra um retorno primitivo. Ele apenas evidencia o fracasso da tentativa moderna de reduzir a experiência humana a equações e previsões. A sátira recai sobre a ideia de que é possível desenhar uma sociedade ideal a partir de princípios objetivos, ignorando o que escapa à normatividade. O cientista que tenta controlar o mundo acaba embriagado, nu, envolvido por forças que não compreende, seduzido por uma empregada grávida que não reivindica lugar político nem status simbólico, mas apenas age conforme seu próprio desejo não codificado.

Há, no centro do filme, uma crítica ao projeto europeu de reengenharia cultural. A ideia de uma comunidade racional, integrada, científica, é desmontada através do riso. A utopia tecnocrática se mostra, no fundo, incapaz de lidar com o imponderável. E o imponderável, aqui, é o corpo. A terra. O sexo. A fome. O desejo. Renoir desmonta a seriedade da razão com gestos banais. O que compromete a lógica do progresso não é uma teoria alternativa. É um almoço.

A trilha sonora acompanha esse tom com leveza zombeteira. Os cantos naturais e os sons mecânicos coexistem. As roupas urbanas contrastam com a nudez eventual. O saber acadêmico é lido em voz alta, mas perde força diante de uma simples gargalhada. A montagem segue um ritmo desacelerado, como se o próprio tempo fosse uma crítica à urgência do mundo moderno. Não há pressa. Não há tese. Há exposição. E a exposição, neste caso, é suficiente para desmontar o discurso da razão imperial.

Recomendar Picnic on the Grass é recomendar uma obra que ensina a rir da seriedade do poder. Um filme que prefere o absurdo à tragédia. Que entende a crítica não como enfrentamento, mas como deslocamento. Renoir, neste trabalho tardio e solar, faz do cinema um campo de descompressão conceitual. Desarma com doçura. Derruba sistemas com um piquenique.

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Bresil
Rififi 5g5n5 1955 - ★★★★★ https://letterboxd.telechargertorrent.org/bresil/film/rififi/ letterboxd-review-905108628 Mon, 2 Jun 2025 14:08:36 +1200 2025-05-30 No Rififi 1955 5.0 934 <![CDATA[

Existe um cinema que pensa com os olhos, que organiza o espaço não para ilustrar ideias mas para colocá-las em movimento. Rififi não é um filme sobre o roubo. É um filme sobre a organização meticulosa da ação em um universo regido por códigos inflexíveis. O que Dassin concebe não é um thriller de assalto. É um diagrama ético-mecânico no qual cada gesto, cada silêncio, cada deslocamento carrega um peso ontológico.

A Paris de Rififi não é um cenário. É uma matriz. A cidade aparece não como pano de fundo, mas como uma grade urbana delimitada por vetores de vigilância, deslocamento e sombra. O espaço é sempre calculado. Os becos não são românticos. São condutores de tensão. Os interiores são cavernas silenciosas de ameaça latente. Cada ambiente é articulado como uma peça num mecanismo de precisão, e a mise-en-scène responde a essa engenharia com frieza quase topográfica.

O célebre segmento do roubo, filmado em silêncio absoluto durante mais de trinta minutos, não é apenas uma demonstração de virtuosismo técnico. É a manifestação formal de uma ética da concentração. Nenhuma palavra é necessária porque a linguagem aqui é feita de sincronia, respiração e atrito. O tempo se curva ao ritmo das mãos. O crime, despido de glamour, se torna puro labor. O espectador assiste não à transgressão mas à execução quase ritual de um plano cuja beleza reside na total supressão da redundância.

Os personagens de Rififi não são arquétipos do noir. São vetores. Eles se movimentam dentro de uma estrutura rígida que não ite falha nem hesitação. O código de conduta que os rege não é moral. É técnico. O erro não é punido por um sistema legal. É punido pela desarticulação interna do grupo. O fracasso de um elo compromete a arquitetura inteira. Dassin constrói a tragédia não pela emoção, mas pela inevitabilidade matemática da falha humana.

A masculinidade em Rififi é abordada como contrato silencioso. Não há sentimentalismo. Não há confissão. A afetividade entre os homens é expressa por gestos mínimos, pela manutenção do código mesmo sob ameaça. A traição, nesse universo, é menos um ato de deslealdade do que uma violação da simetria. O protagonista, Tony, não é heroico. É funcional. Sua força reside na frieza. Seu declínio não vem da moral. Vem da quebra da lógica interna que sustentava o equilíbrio precário entre ação, silêncio e confiança.

A violência não é estilizada. Ela é súbita, mecânica, irrevogável. Os tiros não são catárticos. São pontos finais. Os corpos caem como peças desconectadas de um sistema elétrico. Não há tempo para lamentação. A velocidade dos eventos exige uma atenção que exclui a comoção. O crime não é glorificado. Ele é inevitável porque o mundo em que se move a narrativa não oferece alternativa estrutural à criminalidade senão a obediência cega a outro tipo de engrenagem repressiva.

Jules Dassin, exilado após o macarthismo, dirige com a mão de quem compreende que o controle não é um luxo narrativo, mas uma necessidade existencial. Seu cinema é austero porque o mundo é hostil. A precisão do filme não é estilo. É resistência. Diante de um sistema que persegue, censura e condena, o cineasta responde com rigor composicional. Cada plano é montado com consciência de risco. Cada cena funciona como declaração silenciosa de inteligência operativa.

A ausência de trilha durante o roubo se prolonga para além do formalismo. Ela é a negação do sentimentalismo. O som da respiração, do metal, da corda, da parede sendo perfurada, cria uma coreografia sinestésica em que o som é absorvido pela própria tensão. Não se ouve música porque não há distração possível. O roubo não é espetáculo. É método.

Recomendar Rififi é recomendar uma experiência de cinema que recusa o excesso. Aqui não se trata de provocar emoções explosivas ou suspenses artificiais. Trata-se de assistir ao funcionamento de um sistema fechado e perceber, no momento exato em que uma partícula entra fora de ritmo, o colapso de toda a estrutura. O filme não se contenta em entreter. Ele propõe uma observação precisa do que acontece quando homens tentam operar fora da legalidade sem escapar da lógica interna do mundo que tentam burlar.

Rififi é rigor. É geometria moral. É tensão construída com paciência e desmontada sem piedade. É um filme que dispensa adornos, porque entende que na precisão há mais verdade do que na eloquência. Jules Dassin não filma o crime como narrativa. Ele o filma como topologia. E com isso, produz uma obra tão seca quanto perfeita.

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Bresil
Vagabond 484g5g 1985 - ★★★★★ https://letterboxd.telechargertorrent.org/bresil/film/vagabond/ letterboxd-review-905100389 Mon, 2 Jun 2025 13:59:49 +1200 2025-05-19 No Vagabond 1985 5.0 44018 <![CDATA[

O que Vagabond realiza não é a narração de uma queda. É o testemunho de uma recusa. A figura de Mona, morta na primeira cena e reconstituída por fragmentos díspares de memória alheia, não se constrói como personagem trágica, mártir ou heroína. Ela é uma superfície opaca sobre a qual a sociedade projeta a impossibilidade de absorver o que escapa à codificação funcional da vida. Mona não desaparece. Ela nunca pertenceu.

O campo francês em que se desenrola a ação não é o espaço idílico da tradição agrária. É uma paisagem pós-produtiva. Árida. Exaurida. O solo, as casas, as árvores carregam a marca da obsolescência. A câmera de Varda não romantiza esse cenário. Ela o documenta com precisão quase forense. As cores são pálidas. A luz é dura. A materialidade da paisagem substitui qualquer possibilidade de transcendência. A errância de Mona é registrada como deslocamento entrópico. Sem objetivo. Sem aprendizado. Sem retorno.

A estrutura do filme recusa qualquer eixo narrativo convencional. A protagonista não se transforma. Não se redime. Não elabora sua trajetória em termos dramáticos. O que se observa é uma sucessão de interações sociais em que o corpo feminino vagante confronta, sem palavras, os protocolos de produtividade, higiene, disciplina e domesticidade. Cada gesto de Mona é interpretado por quem a observa. Ela nunca fala sobre si. Apenas existe entre as falas dos outros. A montagem costura essas falas como se fossem testemunhos policiais. Não para elucidar. Para evidenciar a incapacidade do sistema de processar o que não pode ser incorporado.

O filme é estruturalmente antifábula. Ele não oferece lições. Não sugere soluções. A morte precoce da protagonista não é castigo. Nem metáfora. É só consequência. O frio não é símbolo. É clima. A fome não é purgação. É metabolismo negado. A recusa ao trabalho, ao laço familiar, à higiene social, ao planejamento, à fala disciplinada não são rebeldias idealizadas. São abstenções brutas. Mona não confronta o sistema. Ela se ausenta. Ela ocupa os interstícios da funcionalidade. Ela deriva entre resíduos da sociabilidade.

Varda filma a indigência sem glamour nem piedade. A câmera permanece objetiva. O som direto mantém os ruídos ásperos da respiração, da lama, do vento. Não há música que suavize. Não há cortes que ornamentem. A estética do filme é árida como o caminho da personagem. Cada encontro é pontual. Nenhum se desenvolve. A protagonista não cria raízes. Ela não deseja ser lembrada. Ela não pede futuro.

A crítica social está justamente nessa negativa a construir exceção. Não há um instante de Mona que autorize empatia redentora. Ela fuma, bebe, dorme no chão, recusa ajuda, mente, suja o que toca. Não há sacralização do miserável. Há apenas presença sem adaptação. O que o filme mostra é a exata fricção entre a vida orgânica e a normatividade estrutural da sociedade liberal. Mona perturba porque ela não é útil, não é limpa, não é dócil, não é grata. Sua existência interrompe o fluxo social sem gritar. Apenas andando.

A crítica aqui é política na medida em que evidencia o que acontece quando um corpo feminino se subtrai da lógica de reprodução e cooperação social. A mulher vagabunda não é apenas figura marginal. Ela é anomalia inassimilável. Ela não serve à economia. Ela não serve à família. Ela não serve à linguagem pública. O corpo de Mona, sem abrigo, sem função, sem narrativa, é o ponto cego de toda organização que exige finalidade.

O final do filme, que repete o início, recapitula esse ciclo de apagamento. A morte da personagem não encerra nada. Não começa nada. Apenas constata a materialidade do fim. Nenhum plano é emotivo. Nenhuma reação é teatralizada. Tudo permanece no registro da observação imível. O rigor formal do filme não é frieza. É respeito. É o único modo de não falsificar o que Mona se recusou a ser.

Vagabond não se propõe como obra de denúncia. Ele é constatação. Ele organiza uma gramática da não-pertença. Ele grava em celuloide o que o discurso institucional gostaria de esquecer. Varda não nos oferece Mona como símbolo. Ela nos oferece Mona como ruído. E diante desse ruído, o cinema, por um instante, deixa de servir à ficção e começa a servir à verdade que vive na recusa.

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Hiroshima Mon Amour 6u1n5e 1959 - ★★★★★ https://letterboxd.telechargertorrent.org/bresil/film/hiroshima-mon-amour/ letterboxd-review-905096343 Mon, 2 Jun 2025 13:55:30 +1200 2025-04-23 No Hiroshima Mon Amour 1959 5.0 5544 <![CDATA[

O cinema moderno nasce em ruínas. Em Hiroshima mon amour, Alain Resnais funda um novo regime da imagem não pela inovação técnica, mas pela destruição das formas possíveis de continuidade histórica. O tempo, aqui, não é sequência. É implosão. A memória não é evocação. É catástrofe. A experiência não se organiza em narrativa. Ela se propaga em fragmentos.

A estrutura do filme rejeita a cronologia como dispositivo de sentido. O presente não serve como âncora. O ado não retorna como lição. Ambos coexistem em um estado de combustão suspensa. A montagem não liga. Ela colide. Cada corte é uma recusa à lógica causal. O amor, como a história, não se desenvolve. Ele se repete. Ele oscila. Ele hesita. O gesto mais radical do filme é negar qualquer forma de reconciliação entre o íntimo e o político.

A escolha de Hiroshima como espaço da enunciação não é ornamental. Ela é estratégica. O lugar da maior agressão atômica do século XX torna-se o ponto de partida para uma desarticulação do discurso ocidental sobre o tempo, a dor e o corpo. A personagem sa, ao tentar testemunhar a cidade, se depara com a impossibilidade da representação. As palavras falham. As imagens falham. A devastação excede qualquer capacidade de inscrição. O filme é sobre esse excedente.

Não se trata de uma história de amor. Trata-se da impossibilidade da história. O casal não se ama no sentido romântico. Eles colapsam juntos. A relação entre a atriz sa e o arquiteto japonês não é mediada pelo afeto. É mediada pela falência. Ela fala do ado. Ele ouve como quem observa ruínas. Não há interlocução. Há coexistência de ruídos. O diálogo é assombrado pelo silêncio das coisas irrepresentáveis.

Resnais não se interessa pelo visível enquanto superfície. Ele trabalha a imagem como estrutura de desaparecimento. Cada plano contém a marca do que não se vê mais. As cicatrizes da guerra não são apenas as mutilações físicas ou os registros documentais. Elas estão na sintaxe. Na maneira como as imagens se organizam como resíduos, como sintomas. O documentário inicial, com sua sobreposição entre corpos e concreto, estabelece um cinema que não mostra. Ele acusa.

O texto de Marguerite Duras, longe de ornamentar a mise-en-scène, atua como elemento abrasivo. Suas frases curtas, sua prosódia obsessiva, seus circuitos de repetição e de negação constroem uma linguagem que não informa. Ela fere. A palavra deixa de ser mediadora do real. Ela se converte em obstáculo. Ela substitui a lembrança pela tentativa de lembrar. O filme não relata a memória. Ele dramatiza o fracasso da rememoração.

Politicamente, o filme realiza uma ruptura epistemológica com as formas tradicionais de representar o trauma histórico. Ele recusa a espetacularização da guerra, o didatismo da reconstrução nacional, o conforto da ficção redentora. Ao invés disso, propõe a experiência estética como um campo de instabilidade ética. O espectador não consome um enredo. Ele é exposto a um campo de reverberações afetivas que não se fixam em nenhuma imagem conclusiva.

A arquitetura da cidade, por sua vez, é registrada não como cenário mas como fantasma. Hiroshima não é um lugar. É um tempo morto. As construções modernas tentam mascarar a ausência radical deixada pelo impacto. Mas o concreto não basta. Cada esquina parece convocar o que já não está lá. A cidade se constrói sobre um vazio que insiste. Cada deslocamento da câmera é um luto.

Não há música que embale. Não há trilha que oriente. O som do filme opera como um fluxo de reverberações internas. Os silêncios são radicais. As vozes, às vezes, não acompanham as imagens. As palavras permanecem como vestígios de uma tentativa de ordenar o que já se perdeu. A sincronização audiovisual é voluntariamente imperfeita. Tudo que se poderia chamar de harmonia é sabotado.

Na esfera filosófica, o filme encarna uma crítica contundente à ideia de totalidade histórica. O tempo não cura. O tempo não explica. O tempo não reconcilia. O tempo não organiza. Ele apenas insiste. O que Hiroshima mon amour propõe é um cinema da disjunção. Um cinema onde a montagem não costura mas rasga. Onde o ado não retorna como memória mas como espectro.

Recomendar este filme não é sugerir um mergulho estético. É advertir sobre uma travessia. Ver este filme é confrontar os limites do que se pode dizer sobre o irrepresentável. É aceitar que a linguagem falha. Que a história não se completa. Que o amor, sob certas circunstâncias, não é cura. É apenas sobrevida. Alain Resnais não oferece consolo. Ele oferece lucidez. E com ela, a beleza violenta de se saber irremediavelmente incompleto diante do tempo e do outro.

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Bresil
Opera 51406w 1987 - ★★★★★ https://letterboxd.telechargertorrent.org/bresil/film/opera/ letterboxd-review-905093942 Mon, 2 Jun 2025 13:53:02 +1200 2025-04-02 No Opera 1987 5.0 20115 <![CDATA[

A arquitetura do medo em Opera não se constrói a partir do sobrenatural. Ela é rigorosamente material. Ela está na rigidez brutal das linhas, no excesso ornamental como colapso de função, na monumentalidade decadente de um teatro que encena não apenas óperas malditas mas a própria falência da harmonia clássica como ideia de ordem. Dario Argento desenha com precisão quase geométrica um espaço onde o horror não precisa ser inserido como elemento estranho. O horror já está embutido na forma.

Não há aqui nenhum apelo a mitologias transcendentais. O que pulsa em cada plano é a falência do controle. A câmera não observa. Ela invade, escala, persegue, se contorce como se recusasse a obediência às leis da física. A gramática visual do filme é instável e inquieta. Ela adota uma linguagem próxima do acidente. O movimento não embeleza. Ele ataca. Ele transforma o espaço diegético em território bélico. O foco não é o crime. É a tensão estrutural que o antecede. O assassinato é só a consequência.

Argento filma a performance operística como um teatro de ruína. A música, que poderia funcionar como eixo de sentido, é completamente sequestrada por uma encenação que transforma a beleza em pânico. As árias são sufocadas por barulhos dissonantes. O requinte da tradição musical europeia é estrangulado pela mecânica dos corpos em queda. O que deveria ser harmonia se converte em colapso sensorial. O excesso barroco se curva sobre si mesmo até romper.

Os personagens não existem enquanto sujeitos. Eles são funções dramáticas inscritas em um sistema maior. A protagonista, cantando Macbeth em uma ópera amaldiçoada, não carrega um arco psicológico. Ela é arrastada por uma estrutura narrativa que a molda como vetor de tensão. Sua vontade é irrelevante. Sua sobrevivência é um ruído dentro de uma partitura predeterminada. Essa dessubjetivação não a diminui. Ela a insere em um campo semiótico em que a função substitui a intenção. O filme não é sobre ela. É sobre o que ocorre com ela dentro de um campo de forças.

A violência gráfica, longe de funcionar como catarse ou choque moral, está completamente integrada à lógica coreográfica do filme. A brutalidade não é ruptura. É continuidade. Ela se dá com a mesma frieza com que a câmera sobrevoa um palco. As mortes são exatas, medidas, quase matemáticas. Não há indignação. Há precisão. Argento trata a violência com a indiferença de um engenheiro. O resultado é ainda mais inquietante. Não se trata de espetáculo. Trata-se de inevitabilidade.

Há um vetor espacial dominante no filme que merece atenção. Toda sua estrutura cênica está voltada para o vertical. As escadas, os andares superiores, as grades, os fossos. Tudo remete à queda. O medo não está no que se esconde no escuro. Está no que se aproxima de cima. O assassino se torna uma força gravitacional. Ele é o peso que puxa os corpos para o abismo. Esse movimento vertical é o inverso da ascensão. É a coreografia da queda como imagem da condição humana.

As agulhas coladas sob os olhos da protagonista não funcionam como símbolo. Elas operam como dispositivo funcional. Um aparelho de tortura minimalista. Uma extensão da lógica coercitiva do espetáculo. Mas o que interessa é que esse aparato inibe o gesto mais banal e mais humano: desviar o olhar. Trata-se de uma técnica de fixação. De contenção. A imagem se torna obrigatória. A experiência do horror não é uma opção. É um imperativo.

Na superfície da narrativa, temos um serial killer. Mas o assassino é apenas uma engrenagem dentro de uma máquina muito maior. Ele não possui carisma. Não é enigmático. Ele existe para operar a continuidade da perturbação. Sua motivação é reduzida, quase genérica. Isso não é uma falha. Isso é projeto. A opacidade emocional do vilão impede a catarse. Ele não oferece nenhuma mediação entre o espectador e a violência. Ele não tem rosto. Ele não oferece espelho. Ele apenas executa.

A cena final no campo, com a protagonista vagando entre paisagens verdes, pode parecer apaziguadora. Não é. Ela funciona como deslocamento do eixo espacial do terror. A natureza não redime. Ela apenas reprime temporariamente a violência latente que transbordou o espaço urbano. O campo não é solução. É suspensão. O trauma não é resolvido. Ele é armazenado.

Recomendar Opera é propor uma experiência de desestabilização. Não se trata de emoção. Trata-se de estrutura. Trata-se de lógica formal levada ao limite da exaustão sensorial. O horror aqui não vem do escuro. Vem da clareza absoluta com que a mise-en-scène organiza a destruição. Ver este filme é aceitar ser aprisionado por uma engrenagem de cristal. Bela. Fria. Irreversível.

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Bresil
The Color of Pomegranates 5m3n5l 1969 - ★★★★★ https://letterboxd.telechargertorrent.org/bresil/film/the-color-of-pomegranates/ letterboxd-review-905090302 Mon, 2 Jun 2025 13:49:19 +1200 2025-03-19 No The Color of Pomegranates 1969 5.0 26302 <![CDATA[

Assistir a The Color of Pomegranates é como atravessar o silêncio de um ícone. É ser projetado para além da linguagem, para uma zona onde o tempo se imobiliza e o olhar se depara com sua própria limitação. Sergei Parajanov não realiza um filme. Ele concebe uma liturgia visual. Uma espécie de arqueologia imagética da alma armênia em estado puro. A obra é simultaneamente pintura, rito, memória e vaticínio. Ela não narra. Ela revela. Ela não conta a vida de Sayat-Nova. Ela a invoca por meio de imagens que se aproximam mais da oração do que da dramaturgia.

O cinema aqui é privado de suas engrenagens usuais. Não há progressão causal. Não há diálogos explicativos. Não há personagens no sentido tradicional. Há figuras. Há presenças. Há símbolos. O tempo é obliterado. O espaço é codificado. Parajanov constrói um filme que se nega a ser consumido por um olhar colonizado pela lógica do entretenimento. Sua opacidade não é falha. É estrutura. Sua hermeticidade é uma recusa deliberada à inteligibilidade capitalista que pretende traduzir tudo em mercadoria narrativa.

Cada plano é uma composição plástica de extrema densidade simbólica. O corpo humano não atua, ele se oferece como signo. Os objetos não servem à ação, eles funcionam como vetores sagrados. As cores não ilustram emoções, elas organizam afetos arquetípicos. O vermelho do romã é simultaneamente carne, sangue, vocação profética e eros enigmático. O branco dos tecidos, onipresente, alude à transcendência, à pureza mística, à morte cerimonial. O preto se impõe como o absoluto da ausência. O azul, raro e perturbador, desliza como um sussurro do celeste sobre o mundo material.

A câmera não busca capturar. Ela contempla. Ela se ajoelha. O olhar de Parajanov é ritualístico. Ele não documenta o mundo. Ele o reencanta. Cada imagem possui o peso da eternidade. As composições são estáticas como afrescos. O movimento, quando ocorre, é mínimo, sagrado, coreografado com a solenidade de um gesto litúrgico. A montagem é puramente associativa. Não articula ações. Articula signos. Constrói constelações semânticas que exigem do espectador uma entrega total, quase meditativa.

A estrutura do filme se aproxima de uma fenomenologia poética da memória. Sayat-Nova, o poeta cuja vida é evocada, não é o protagonista. Ele é o campo vibratório em torno do qual tudo ressoa. O filme não dramatiza sua trajetória. Ele a sublima. O nascimento, a infância, a juventude, o exílio, a mística, a morte, tudo é tratado como experiência cósmica. A biografia é dissolvida numa espécie de mística imagética onde o individual é tragado pelo universal. A subjetividade é absorvida pelo rito. A história pessoal torna-se arquétipo.

Filosoficamente, The Color of Pomegranates dialoga com uma tradição que antecede a modernidade ocidental. Sua ontologia é icônica, não representacional. O mundo não é o que se vê. É aquilo que se deixa entrever através do visível. Parajanov opera numa chave pré-cartesiana. Não há dicotomia entre mente e corpo, entre objeto e símbolo, entre estética e metafísica. Tudo vibra na imanência. Tudo participa de uma ordem secreta que só se revela a quem olha com paciência sacrificial. O filme não se revela a quem o consome. Ele se oferece a quem o contempla como se contemplasse o rosto de um santo.

Politicamente, esta obra é uma insurreição. Contra o realismo socialista, contra a padronização soviética da sensibilidade, contra a esterilização da imagem pelo discurso do progresso. Parajanov, perseguido e encarcerado, desafia o regime não com palavras, mas com formas. Sua arte é sua desobediência. Sua iconoclastia, paradoxalmente, está em sua iconofilia. Ele reabilita o sagrado como categoria estética. Ele confronta o regime materialista com a potência do invisível. E ao fazer isso, ele transforma o cinema em um espaço de resistência mística.

É impossível não mencionar o aspecto musical da obra. Embora o som não ocupe o lugar tradicional da música de cena, ele constitui uma presença quase xamânica. Cânticos ancestrais, ruídos cerimoniais, fragmentos litúrgicos se entrelaçam para criar uma tessitura sonora que não acompanha a imagem, mas a co-cria. O som não ilustra. Ele invoca. Ele é parte do corpo sensível da imagem. Essa integração radical entre som e forma, entre matéria e espírito, evoca o cinema como sinestesia total, como êxtase silencioso.

Recomendar The Color of Pomegranates é um gesto de iniciação. Trata-se de um filme que não deseja ser gostado. Ele deseja ser decifrado pelo coração. Ele convoca um tipo de inteligência que não é discursiva, mas intuitiva, simbólica, quase oracular. Para quem busca no cinema não o espelho do mundo, mas a abertura para o invisível, esta obra é uma catedral. Um templo de imagens silenciosas, onde cada plano é uma porta para outra camada da existência.

Não se trata de entender. Trata-se de render-se. Parajanov oferece uma experiência espiritual na era do ruído. Uma epifania visual que exige um outro tipo de tempo. Um tempo que não corre. Que não acumula. Que não compete. Um tempo que apenas é. Assistir a este filme é reencontrar o sagrado perdido na imagem. É compreender que o cinema, em sua forma mais pura, pode ser também um sacramento.

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Bresil
Buffalo '66 g1k49 1998 - ★★★★½ https://letterboxd.telechargertorrent.org/bresil/film/buffalo-66/ letterboxd-review-905087326 Mon, 2 Jun 2025 13:46:18 +1200 2025-02-07 No Buffalo '66 1998 4.5 9464 <![CDATA[

Buffalo ’66 é uma ferida estética que se recusa a cicatrizar. Um cinema de contornos crus e beleza dissonante que, por meio de sua aparente singeleza, expõe um abismo emocional de proporções ontológicas. Longe das fórmulas redentoras ou dos melodramas convencionais que aprisionam a fragilidade sob códigos moralizantes, o filme de Vincent Gallo nos lança em um espaço intermediário, uma zona de indeterminação onde a sensibilidade e a brutalidade se colidem continuamente sem oferecer catarse.

Este é um filme que não busca convencer. Ele não deseja ser amado. Ele não quer justificar. Seu protagonista, Billy Brown, é a encarnação da inadequação ontológica. Ele não pertence ao mundo. Sua existência parece desenhada por um erro de fabricação. Desde os primeiros segundos, compreendemos que não estamos diante de um arco de superação. Estamos diante de uma subjetividade colapsada. Ele não é um herói, nem um anti-herói. Ele é um sintoma. Um sintoma do abandono estrutural, do desajuste afetivo, da falência da linguagem emocional que atravessa a cultura ocidental contemporânea.

A narrativa se desenvolve com uma languidez que refuta a progressão. Nada em Buffalo ’66 caminha para um objetivo. Tudo se arrasta com uma espécie de elegância doentia. Cada gesto de Billy é ao mesmo tempo ameaça e súplica. Sua agressividade é a última forma de comunicação que lhe resta. Ele não ama porque não sabe nomear o afeto. Ele sequestra porque precisa ser tocado. Ele mente porque dizer a verdade significaria itir sua insignificância. Vincent Gallo constrói uma personagem que não é redimida, mas desnudada. E sua nudez emocional é desconcertante.

Layla, interpretada por Christina Ricci, não é mero instrumento narrativo. Sua figura funciona como um corpo simbólico que desarma a lógica masculina da violência. Ela opera como presença silenciosa que, longe de representar a salvação, encarna uma forma de alteridade inassimilável. Sua recusa em reagir de modo previsível subverte a estrutura do poder discursivo que Billy tenta impor. Ela não se opõe. Ela acolhe. Mas esse acolhimento não é conivência. É estratégia de desarmamento. Layla desestabiliza o delírio fálico do controle. Ela não corrige Billy. Ela o desarma com afeto impreciso e presença translúcida.

O filme inteiro é sustentado por uma lógica da insuficiência. A cidade, a casa dos pais, os bares, os quartos de motel, todos os espaços são territórios do deslocamento afetivo. Não há lar. Não há pertencimento. Não há raiz. Buffalo é menos uma cidade do que uma condição ontológica. É o nome de um trauma territorializado. Um não-lugar onde a história pessoal e a história coletiva colidem e se fossilizam. É a paisagem emocional da masculinidade tóxica em decomposição, do sonho americano em ruínas, da família como instituição fracassada de amor.

Cinematograficamente, Gallo realiza uma proeza que desafia classificações. Ele opera com uma linguagem que parece improvisada, mas cuja composição é rigorosa. O uso de lentes anamórficas e paletas dessaturadas transforma cada plano em uma pintura fantasmática. A câmera não busca beleza tradicional. Ela captura o desconforto, a rigidez dos corpos, o silêncio entre os diálogos. A temporalidade é perturbada por flashbacks que não explicam, apenas insinuam. Cada plano é uma memória fragmentada, um afeto não resolvido, uma emoção sem destinatário.

A trilha sonora funciona como dispositivo de resgate lírico. O uso de Yes, King Crimson e Heart of the Sunrise não é decorativo. É dramático. É musicalmente trágico. As músicas não pertencem ao ambiente diegético. Elas pertencem ao interior emocional das personagens. São seus gritos sufocados, seus desejos impossíveis, suas fantasias de plenitude. O momento do balé de Layla na pista de boliche, enquadrado por uma câmera estática e cercado por luzes inócuas, é talvez um dos ápices poéticos do cinema independente americano. Um instante de suspensão em que o tempo parece abrir uma fresta para aquilo que poderia ter sido. Um intervalo de beleza improvável no centro do desamparo.

Buffalo ’66 não é um filme sobre amor. É um filme sobre a impossibilidade de amar em um mundo que não ensinou seus homens a sentirem. Billy é a epítome de uma geração que foi criada para performar dureza e eficiência, mas que colapsa sob o peso de sua própria inabilidade afetiva. A masculinidade que ele encarna não é forte. É trágica. E Gallo a disseca sem anestesia.

Recomendar este filme é recomendar um mergulho. Não um mergulho confortável em águas narrativas cristalinas, mas um mergulho em um lago turvo de emoções desorganizadas, pulsões contraditórias, traumas mal resolvidos. Buffalo ’66 não é para ser compreendido. É para ser sentido com a pele em carne viva. Para quem busca um cinema que sangra, que ofende, que encanta e que confunde, este filme é um artefato imprescindível.

Ele não oferece redenção. Oferece verdade. Uma verdade imperfeita, imatura, falha e profundamente humana.

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Bresil
Macunaima 74u3i 1969 - ★★★★★ https://letterboxd.telechargertorrent.org/bresil/film/macunaima/ letterboxd-review-905062697 Mon, 2 Jun 2025 13:20:24 +1200 2025-05-31 No Macunaima 1969 5.0 68173 <![CDATA[

Macunaíma não é um filme. É um rito antropofágico em celuloide. É uma devoração alucinada do Brasil por si mesmo. É uma síntese violenta, tragicômica e barroca de tudo aquilo que há de sublime e de grotesco na formação histórica, política, cultural e psíquica da identidade nacional. Baseado na obra de Mário de Andrade, mas transmutado em outra coisa inteiramente por Joaquim Pedro de Andrade, o filme constitui uma das manifestações mais radicais da linguagem cinematográfica brasileira. Um espelho quebrado no qual o país se vê refletido não como quer ser, mas como de fato é.

Não há como aproximar-se de Macunaíma com a ingenuidade da crítica convencional. Sua estrutura não se curva à linearidade narrativa tradicional. É um filme que explode o realismo em nome do delírio tropical. Sua estética não é simplesmente alegórica, é mitocrítica. Joaquim Pedro constrói uma cosmogonia onde o herói sem caráter, figura ambígua e mutável, encarna todas as contradições históricas do Brasil moderno. Macunaíma é simultaneamente índio, negro, branco, selvagem, urbano, ingênuo, esperto, vítima e algoz. Ele não evolui, ele transmuta. Não busca sentido, ele colapsa sentidos.

A estrutura fílmica desafia qualquer categorização simplista. Trata-se de um carnaval dialético, uma montagem dialógica entre o arcaico e o moderno, entre o épico e o escatológico, entre o sublime e o pornográfico. Joaquim Pedro de Andrade não oferece respostas. Ele exacerba perguntas. Ele radicaliza a forma até os limites do inável para produzir no espectador um efeito que é menos contemplativo e mais epifânico. Cada cena é um corte na carne da brasilidade. Cada imagem é um manifesto contra a homogeneização cultural promovida pelas estruturas coloniais e neocoloniais.

Politicamente, Macunaíma é um gesto de insurreição. Lançado no auge da ditadura militar, o filme atua como arma sem disfarce. Sua iconoclastia imagética opera como sabotagem simbólica. O herói que não tem caráter é também a nação que nunca pôde assumir um projeto de soberania legítima. O Brasil é apresentado não como uma promessa, mas como uma tragicomédia interminável. A elite é retratada como grotesca, caricatural, patética em sua pretensão de civilização. A burguesia tropical, encarnada em figuras monstruosas como a guerrilheira e o gigante, não é agente de mudança, mas caricatura de si mesma. A revolução é impotente. O progresso é farsa. A história é um eterno retorno da malandragem, do improviso, da esperteza que devora o próprio futuro.

Do ponto de vista filosófico, o filme propõe uma reflexão profunda sobre identidade, alteridade e linguagem. Macunaíma é o anti-herói nietzschiano. Um Dionísio tropical que dança sobre os escombros de qualquer moral estável. Ele não é moralmente corrompido. Ele é moralmente impossível. Em sua figura se inscreve uma crítica devastadora à ontologia ocidental baseada na unidade do sujeito. Macunaíma é pura multiplicidade. Ele é devir, ele é máscara, ele é performance. Sua existência não é afirmação de essência. É recusa de substância. Seu riso não é alegre. É niilista. É o riso daquele que já entendeu que não há salvação possível dentro da lógica colonial-capitalista que estruturou a modernidade brasileira.

Cinematograficamente, Joaquim Pedro de Andrade realiza uma obra de invenção radical. O uso das cores é orgíaco. O som é caótico. Os enquadramentos são instáveis, desproporcionais, excessivos. A montagem é sincopada, desritmada, subversiva. Tudo colabora para instaurar um ambiente de permanente inquietação. O filme nega o conforto do espectador burguês. Sua estética opera em estado de excesso. Não há sutileza. Há acúmulo. Há saturação. Há colapso. Joaquim Pedro não quer agradar. Ele quer desconstruir. Ele quer desnudar. Ele quer que o Brasil se veja, por fim, como aberração sublime.

E no entanto, há beleza. Há momentos de puro encantamento. Há cenas que parecem arrancadas de um sonho tropical surrealista. Macunaíma, ao mergulhar na lama simbólica do país, encontra diamantes. Encontra, entre uma flatulência e uma epifania, imagens de uma potência visual rara. A floresta, os rios, os deuses, os espíritos, os cantos ancestrais e os arquétipos coloniais convivem na tela como num terreiro cinematográfico. O filme se aproxima do candomblé, da umbanda, do sincretismo como forma de resistência estética e política. Macunaíma é um filme orixá. Um filme-feitiço. Um cinema feito de corpo, de suor, de barro, de sangue.

Recomendar este filme é recomendar uma iniciação. Macunaíma não é uma narrativa que se assiste. É uma prova que se atravessa. É um mergulho no inconsciente coletivo da nação, um inconsciente poluído, sensual, contraditório, lírico e brutal. Para quem quiser se maravilhar com o Brasil em sua forma mais profunda, mais suja, mais encantada e mais feroz, não há caminho mais direto. Trata-se de um filme imprescindível para quem deseja compreender que o cinema não é apenas uma tecnologia de projeção visual, mas uma prática de convocação mítica. Um ritual coletivo de exorcismo histórico.

Macunaíma é o Brasil sonhando consigo mesmo e acordando num pesadelo cômico. É o espelho deformado da nossa formação social. É o riso que não consola, mas denuncia. É a prova de que o gênio tropical pode ser crítico, devastador e inavelmente lúcido. Um marco intransponível da nossa cinematografia. Um grito em forma de poema. Um clássico que não envelhece porque o Brasil insiste em repetir os mesmos erros com novas máscaras.

Ao final da projeção, não resta o aplauso. Resta o silêncio. E um desejo ardente de pensar mais, de ler mais, de filmar mais, de lutar mais. Porque Macunaíma nos lembra que a arte não é adorno. É combate. E que a brasilidade, com todas as suas contradições, é uma questão que ainda arde como uma ferida aberta.

Quem quiser se maravilhar, que se prepare para o espanto.

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Bresil
F for Fake 4f1dg 1973 - ★★★★★ https://letterboxd.telechargertorrent.org/bresil/film/f-for-fake/ letterboxd-review-905058896 Mon, 2 Jun 2025 13:16:22 +1200 2025-04-18 No F for Fake 1973 5.0 43003 <![CDATA[

F for Fake é uma performance-máquina, um artefato cinematográfico que implode as convenções da veracidade narrativa com a astúcia de um ilusionista que, ao revelar o truque, o torna ainda mais enigmático. Não se trata de um documentário, tampouco de uma ficção, mas de um objeto auto-reflexivo que interroga, com ironia barroca e virtuosismo técnico, os fundamentos epistemológicos da arte e da autoria. Orson Welles não filma para contar histórias. Ele filma para implodir certezas.

O filme se estrutura como um jogo especular que absorve o espectador em um torvelinho de narrativas concêntricas, todas elas orbitando em torno de um conceito fundamental: a instabilidade do real. Elmyr de Hory, Clifford Irving, Picasso, Oja Kodar e o próprio Welles tornam-se vértices de uma espiral autorreferencial em que o verdadeiro e o falso colapsam um sobre o outro, dissolvendo a própria distinção ontológica que sustenta a noção de autenticidade. O cinema, neste gesto, não é apenas uma arte da ilusão. É a ilusão como arte.

A montagem frenética, quase caleidoscópica, funciona como estratégia de desestabilização perceptiva. O tempo é desconstruído, a linearidade é sabotada, a voz em off de Welles assume o papel de demiurgo travesso que manipula imagens e sons como um prestidigitador que não busca enganar, mas revelar que todo engano é, em última instância, coautoria entre o criador e o espectador. Nada é gratuito. Cada corte, cada raccord, cada sobreposição sonora funciona como índice de um discurso que tematiza sua própria construção.

Welles conduz a câmera como quem maneja uma varinha mágica. Ele se inscreve no filme não como personagem, mas como consciência diegética. Sua presença é performática, autoritária, provocadora. Ele não interpreta. Ele enuncia. E sua enunciação é simultaneamente cínica e apaixonada, incrédula e deslumbrada. Em sua figura coalescem o falsário, o mágico, o cineasta e o filósofo. Todos cúmplices, todos mentirosos, todos encantadores.

A investigação sobre a falsificação não se limita à arte plástica. Ela se estende ao próprio gesto artístico, à gênese do criador, à legitimidade da obra. Se Elmyr de Hory é capaz de emular os grandes mestres com tamanha precisão que especialistas são incapazes de identificar a fraude, então onde exatamente reside o valor da arte? Na ? Na aura? Na crença compartilhada? Ou, como insinua Welles, em uma ficção coletiva que insiste em chamar verdade de tudo aquilo que é aceito como tal por um número suficiente de pessoas respeitáveis?

A sequência final, em que o próprio Welles ite que parte do que acabamos de ver é inventado, não deslegitima a experiência anterior. Pelo contrário. Ele a consagra como gesto artístico radical, como proposição estética que desestabiliza as fronteiras entre o fato e a fabulação. A mentira não é um desvio da verdade. É uma de suas formas. A fabulação é tão constitutiva da experiência humana quanto a memória. Talvez mais.

O filme, nesse sentido, funciona como um espelho quântico. Ele não nos mostra o mundo, mas nos devolve o olhar que lançamos sobre ele. Cada espectador é confrontado com sua própria cumplicidade nos pactos de credulidade que sustentam o mundo da arte, da mídia, da política, do amor. O truque, afinal, só funciona porque queremos que funcione. Só há encantamento onde há desejo de crer. E Welles sabe disso. Ele nos seduz exatamente porque nos trata como cúmplices, jamais como vítimas.

F for Fake não é um filme sobre mentiras. É uma ontologia do artifício. É uma meditação sobre o valor do gesto criador em um mundo saturado de cópias, s, certificados e curadores. Welles nos convida a rir da própria necessidade de autenticidade, a olhar com ironia os discursos de autoridade, a aceitar que toda criação é, em certo sentido, falsificação. O artista é um mentiroso que diz a verdade mentindo. O espectador é o crente que sabe que está sendo enganado e, ainda assim, prefere continuar acreditando.

Este não é um filme que se compreende. É um filme que se experimenta. Um delírio ensaístico que reconfigura a linguagem cinematográfica como território de incerteza. Um labirinto de espelhos que não se propõe a refletir, mas a refratar. Um monumento à dúvida. Um hino à ficção. Um gesto de liberdade absoluta.

E quando a tela se apaga e o truque é revelado, não nos sentimos traídos. Sentimo-nos iniciados.

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Bresil
Ivan's Childhood y5lf 1962 - ★★★★★ https://letterboxd.telechargertorrent.org/bresil/film/ivans-childhood/ letterboxd-review-905057003 Mon, 2 Jun 2025 13:14:24 +1200 2025-03-06 No Ivan's Childhood 1962 5.0 31442 <![CDATA[

A Infância de Ivan é mais do que uma obra inaugural. É uma liturgia fílmica que anuncia, com intensidade inável, o advento de um cineasta que concebe o cinema não como artifício, mas como sacerdócio ontológico. Tarkovski não filma imagens, ele escreve tempo. E nesta estreia fulgurante, já se delineia sua obsessão primordial: a tensão entre a eternidade e o efêmero, entre a memória e o real, entre a pureza irrecuperável da infância e a brutalidade entrópica da história.

A infância, em Tarkovski, jamais é cronológica. Ela é substancial. Não se trata de uma etapa do desenvolvimento humano, mas de uma substância metafísica, um estado de graça anterior à queda, anterior à dor. Ivan, espectro de menino em corpo de guerreiro, carrega no olhar a inável antítese entre o que foi e o que jamais poderá ser de novo. Seu rosto, marcado pela ausência de infância, é a negação viva da possibilidade do paraíso. Mas é também, paradoxalmente, sua única lembrança.

O filme se estrutura como um palimpsesto temporal onde os sonhos emergem não como escapes da realidade, mas como revelações do real mais profundo. Os momentos oníricos não são indulgências estéticas. São vestígios de uma infância anterior à devastação, fragmentos de um tempo perdido que insiste em retornar sob a forma de imagem. Imagens que não explicam, que não ilustram, que apenas iluminam. A praia, os cavalos, a mãe ao longe, o poço. Cada plano-sonho é uma liturgia da memória, um gesto de resistência contra o esquecimento imposto pela guerra.

A guerra, por sua vez, não é contextual. Não é cenário. É um estado de espírito. Tarkovski recusa a glorificação bélica, recusa o heroísmo, recusa o maniqueísmo. A guerra é o colapso da ordem simbólica, a interrupção do fluxo vital, o cancelamento da infância. Ivan, amputado do tempo que deveria ser de descoberta e afeto, é lançado numa adultez prematura, numa existência de pura função estratégica. Sua missão não é escolha, é compulsão. Ele não age. Ele reage ao mundo devastado que lhe foi imposto.

O preto e branco de Ivanovo Detstvo não é apenas estético. É metafísico. Cada sombra é prenúncio de morte, cada luz é evocação de um tempo anterior ao trauma. A fotografia de Vadim Yusov constrói um espaço onde a beleza e o horror coexistem numa tensão permanente.

O realismo dilacerado da guerra é constantemente interrompido por vislumbres de um sublime perdido, sugerindo que a verdade da existência não se encontra na objetividade dos fatos, mas na intensidade dos afetos.

A poética de Tarkovski é encarnada nos silêncios, nos gestos suspensos, nos olhares que não se completam. Seus personagens não falam para comunicar. Falam para não se afogarem no silêncio. A linguagem é falha, fragmentada, insuficiente. A imagem, por outro lado, é plena. A câmara, com seus lentos movimentos contemplativos, parece procurar algo que já se perdeu. Uma pureza, uma integridade, uma infância.

Ivan não é personagem. É alegoria viva da infância negada, do tempo corrompido, da inocência que, uma vez perdida, não pode ser restaurada. Sua obstinação, sua dureza, seu olhar cortante não são força, mas luto. Ele não deseja vencer a guerra. Ele deseja, silenciosamente, que o tempo volte a correr para trás.

No final, quando os documentos mostram seu destino, não há surpresa. Há consternação. Tarkovski não precisa dramatizar a morte, pois já a anunciou desde o início. O menino estava morto antes de morrer. Sua verdadeira morte foi a dissolução do tempo infantil, a interrupção do fluxo do sonho. O plano final, Ivan correndo pela praia, livre, feliz, entregue ao vento e à areia, não é redenção. É assombro. Porque ali, naquela imagem que surge como fantasmagoria, compreendemos finalmente que a infância não é apenas uma lembrança. É uma ausência que nos habita.

A Infância de Ivan não é um filme sobre guerra. É um réquiem para o menino que cada um carrega sepultado sob os escombros da experiência. É uma elegia àquilo que nos formou e nos foi arrancado. É uma oração silenciosa ao tempo que não volta, ao amor que não se disse, à luz que se apagou.

E ao olhar esse menino andar solitário entre as árvores, ouvimos não o barulho da guerra, mas o rumor longínquo de um tempo sagrado. Tempo em que existir era ainda milagre, e não tarefa.

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Bresil
Mulholland Drive 4m2n2f 2001 - ★★★★★ https://letterboxd.telechargertorrent.org/bresil/film/mulholland-drive/ letterboxd-review-905053265 Mon, 2 Jun 2025 13:10:24 +1200 2025-05-24 No Mulholland Drive 2001 5.0 1018 <![CDATA[

Assistir a Cidade dos Sonhos é submeter-se a uma experiência liminar que dilacera as estruturas narrativas convencionais, instaurando uma vertigem ontológica que nos obriga a reconfigurar, incessantemente, os próprios alicerces de percepção da realidade, da identidade e do desejo. A obra de David Lynch não apenas desafia as categorias do cinema enquanto linguagem, mas reconfigura o espectador como um sujeito descentrado, arrastado por forças inconscientes e espectrais que transgridem a linearidade causal, reintroduzindo o onírico como vetor de verdade.

Lynch, nesse delírio labiríntico, erige uma Los Angeles espectral que se apresenta menos como cidade geográfica e mais como um palimpsesto psíquico, um espaço de projeções, repressões e fantasmas. A metrópole transforma-se numa superfície de inscrição de traumas e fantasias, onde a figura da aspirante a atriz se dissolve entre persona e máscara, entre sujeito e simulacro, entre o desejo e a sua falência. Betty e Diane não são personagens no sentido aristotélico; são, antes, fractais da mesma subjetividade ferida, implodida pela colisão entre o imaginário hollywoodiano e a crueza inexorável da realidade.

O que se vê em Cidade dos Sonhos não é uma simples inversão temporal ou um jogo de espelhos narrativos. É uma desconstrução da lógica de representação, onde o tempo se dobra sobre si mesmo, onde a memória é uma ficção autofágica, onde o sonho não é fuga mas retorno traumático. A suposta virada da metade do filme não oferece explicações; ao contrário, exacerba o caráter abissal do enigma, colocando o espectador numa posição epistemologicamente precária, que recusa a totalização hermenêutica.

A mise-en-scène de Lynch é de uma precisão brutal: a câmera desliza como um espectro, insinuando presenças que nunca se concretizam, e os cortes obedecem a uma lógica do inconsciente, uma sintaxe onírica que convoca Lacan mais que Eisenstein. O som, sempre intrusivo e desconfortável, funciona como índice de uma Realidade que não se deixa simbolizar, um elemento sinistro que constantemente irrompe no simbólico para lembrar que algo foi reprimido, que algo persiste para além da narrativa.

O Clube Silencio emerge como o ápice dessa experiência, uma epifania do irrepresentável. “No hay banda” não é apenas um aviso sobre a ausência de música ao vivo, mas uma proposição ontológica: tudo é ilusão, tudo é projeção. A performance de Rebekah Del Rio, rasgando o ar com um Llorando que transcende a carne e a linguagem, é uma espécie de eucaristia profana, onde o real irrompe no coração do simulacro. Chorar naquele momento é, paradoxalmente, reconhecer que nada é verdadeiro e, ainda assim, tudo é sentido como se fosse. A emoção não depende da veracidade; ela é anterior à linguagem, anterior à razão.

O erotismo em Cidade dos Sonhos não é mera exibição do desejo, mas a revelação de sua falência. O encontro carnal entre Betty e Rita é, simultaneamente, ápice e ruína da fantasia. O desejo, uma vez consumado, esfacela-se, revela sua natureza de engano e insuficiência. O amor torna-se um campo de projeção, e a perda é o destino inevitável de toda idealização. Diane Selwyn, no ápice do desespero, descobre que o Outro jamais poderá corresponder à imagem que se projetou sobre ele. O assassinato que ordena é, em última instância, um gesto de autoaniquilação.

David Lynch não oferece respostas porque sua arte não opera na lógica da elucidação, mas na da evocação. Seu cinema é fenomenológico, intuitivo, assombroso. Em Cidade dos Sonhos, ele captura o instante em que o sujeito percebe que sua identidade é uma ficção costurada com pedaços de lembrança, desejo, trauma e cinema. A tela se torna um espelho negro, e o espectador, confrontado com sua própria fragmentação, não tem escolha senão mergulhar nesse abismo.

Este filme não me ensinou apenas a amar o cinema. Ele desestabilizou minhas categorias de mundo. Ensinou-me a ver na imagem um lugar de perda e de revelação, onde o belo e o terrível são indissociáveis. Ensinou-me a viver, não como quem busca sentido, mas como quem acolhe o enigma.

Dizer que Cidade dos Sonhos é um filme seria subestimar sua potência. É um sismógrafo da alma, um ritual iniciático, uma carta de amor ao inconsciente e uma elegia à identidade. É o cinema elevado à sua potência máxima: aquele que não apenas conta uma história, mas que transforma o próprio ato de ver em experiência ontológica.

E quando as cortinas se fecham e ouvimos o sussurro final, “Silencio”, não é um encerramento. É uma invocação.

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